segunda-feira, 9 de março de 2009

Do Magalhães e da Fé.

Depois do lançamento do Magalhães, há já quase um ano, muito se escreveu sobre o folclore associado ao mesmo. Os episódios sucederam-se: a máquina nacional que afinal é concebida nos EUA, fabricada em partes por esse mundo fora e montada à pressa em Portugal, a distribuição em que se 'desofereciam' as máquinas depois de os media abandonarem a cerimónia, as acções de formação com direito a ‘oficinas de aprendizagem’ em que se compunham odes ao Magalhães, os assessores ministeriais que fazem o seu 'assessoral' trabalho no Magalhães, o caudilho sul-americano que se congratula com a robustez física do equipamento, as crianças que cobiçam (sabe Deus com que desespero) as máquinas que não têm e que o colega exibe.
Folclore à parte, o último episódio seria a gota de água que faria transbordar o copo de uma história isenta de episódios edificantes, não fora o facto de, aparentemente, já ninguém esperar que nada de positivo venha do Magalhães, do Ministério da Educação e, supõe-se, de quem tem de gerir os negócios da nação. A história resume-se em duas linhas: o Magalhães é distribuído com o sistema operativo Caixa Mágica (um dos muitos derivados do GNU/Linux) que inclui um programa, dito didáctico, com erros de gramática chocantes. Há muitas maneiras de olhar para a questão, muitos argumentos e contra‑argumentos a esgrimir mas o facto é que, num país em que se impõe a certificação dos manuais escolares, o mais ‘revolucionário’ dos instrumentos pedagógicos, distribuído pelo próprio Ministério da Educação, tem conteúdos escritos por gente iletrada em Português. Isto deveria ser o suficiente para alguém perder o emprego mas como veremos não é.
 
O especialista e o político
Seria muito mais fácil analisar esta, como outras decisões políticas, fazendo uma saudável destrinça entre o que é do foro político e do foro científico. Umberto Eco pôs a questão melhor do que ninguém, no célebre artigo intitulado A função dos intelectuais (revista Época, 31 de Janeiro 2003). Essencialmente, a função do intelectual deveria ser educar o político (o modelo aristotélico), ou criticar o grupo a que pertence (socrático). O intelectual não toma decisões políticas e deve conservar o bom hábito de ganhar a animosidade do grupo a que pertence sendo a sua consciência crítica. Esta separação de águas, sedutora como muitas das análises de Eco, peca por ser simplesmente impossível de praticar, pelo menos no idiossincrático contexto político que os portugueses criaram. Não é tanto que o papel do político e do especialista (o cientista, o técnico, já não o erudito) se tenham esbatido, antes que o discurso de um se socorra da retórica do outro.
A gente especializada em análise do discurso poderá aprofundar o tema com muito mais arte do que eu mas é notável como cada vez mais os políticos buscam o conforto do halo académico na projecção das suas agendas políticas e como os especialistas, quando instados a se pronunciarem em público, são pressurosos em colorir o seu discurso com retórica social, iminentemente política e engagé como forma de melhor validar (perante o público, os pares ou os decisores políticos?) as conclusões e corolários do seu trabalho. Este é um tema que, na minha ingénua opinião, merecia especial atenção dos estudos políticos e linguísticos uma vez que boa parte da nossa relação com a realidade é retoricamente condicionada.
As implicações deste acinzentamento dos papéis tornam-se mais claras quando é preciso distribuir responsabilidades. Se o Magalhães foi apresentado aos contribuintes portugueses como uma inovação tecnológica e pedagógica, apenas podemos confiar na palavra de ‘especialista’ do primeiro-ministro e da Ministra da Educação uma vez que nenhum outro especialista veio a terreiro explicar, ainda que numa linguagem que até o comum dos contribuintes compreenda, que pressupostos metodológicos estavam por trás do projecto Magalhães. Posso estar a cometer uma injustiça terrível, mas do que tenho lido nestes nove meses, nenhum especialista reputado na área das Ciências da Educação justificou esta decisão política com um pressuposto teórico ou metodológico que, não tendo de ser consensual, seja uma boa prática com provas dadas em contextos comparáveis com o sistema educativo português.
Helena Damião, no blogue De Rerum Natura, apresentou a questão em termos sucintos: ninguém veio porque não há. Não há modelo teórico de aprendizagem em que se integre o Magalhães, não há um projecto de treino dos professores, não há um trabalho minimamente sistematizado que permita potenciar o uso do novo recurso e medir o seu real impacto nas aprendizagens que os alunos (não) farão. Há computadores portáteis na categoria dos netbooks a serem distribuídos a esmo, com software desenvolvido com igual cuidado, aos alunos porque o primeiro-ministro quer e há quem pague. E é tudo. Perdoar-me-ão a natureza da comparação, mas mil macacos com mil máquinas de escrever (ou processadores de texto) não fazem um Shakespeare, e milhares de alunos e professores com um portátil não equivalem a mais, melhores e mais adequadas aprendizagens.
A situação tem algo de esquizofrénico. Um sistema educativo que centraliza nos serviços do Ministério decisões tão comezinhas como a compra de radiadores para uma sala de aula, ou o tamanho e formato dos cacifos, que sujeita a utilização de manuais a certificação ministerial, apoia-se na expectativa de que a utilização que professores e escolas darão aos recursos que agora lhe são disponibilizados, qualquer que ela seja, se resuma, sempre, a ganhos nas aprendizagens. É de questionar por que motivo, se as escolas e os professores são tão competentes para utilizarem um recurso que nem sequer existia quando muitos deles saíram das universidades e escolas superiores de educação, não lhes é permitido criar os seus próprios programas, escolher os manuais que melhor se adequam aos seus alunos e tomar nas próprias mãos o ónus de toda a avaliação das aprendizagens, incluindo a certificadora de aprendizagens /competências.
A resposta é que não é porque de facto não são capazes. Não o são todas as escolas e professores com igual grau de qualidade e supõe-se então que muitas destas actividades são melhor executadas recorrendo a um princípio de subsidiariedade: o nível superior intervém onde e quando o pode fazer com maior eficiência e eficácia que os níveis inferiores. Se já se levantavam (e levantam) muitas objecções a este raciocínio, agora os professores podem, uma vez mais e com reforçada razão, dizer "não é bem assim". Porque, quando o melhor que o nível superior de decisão, bem como os especialistas que o aconselham (ou será que constituem?), tem para oferecer é isto, com toda a razão qualquer professor, mais ou menos experiente, com melhor ou pior formação, pode afirmar que faz bem melhor.
Talvez fizesse ou não. Talvez o impacto dos seus erros fosse menor, mais facilmente corrigível. Talvez estivesse sujeito a menos escrutínio público e o seu ascendente sobre os pais permitisse mais facilmente escamotear as consequências negativas da sua incúria. Talvez, poupado à irracionalidade descontextualizada do ‘especialista’ e do ‘burocrata’ alheados do ‘terreno’, pudesse usar os seus recursos como mais ninguém poderia utilizar. Ou talvez se resumisse a repetir o pouco que soubesse, imitando os colegas, anulando o seu próprio potencial de crescimento e sistematicamente afastando-se das reais necessidades dos seus alunos. Ou talvez ficasse tudo na mesma.

O seu a seu dono
 De qualquer forma, o sistema político/educativo que temos hoje é este e é neste contexto que seria de todo salutar ensaiar a distribuição de algumas responsabilidades. Note‑se que o sistema não é isento de virtudes: até o ‘egoísmo’ político de um único deputado tem externalidades positivas. Não querendo acreditar que a professora amiga de José Paulo Carvalho foi a primeira, em todo o país, a dar conta dos erros gramaticais no programa GCompris, não fora o facto de tais erros serem de utilidade política para o deputado e possivelmente o caso continuaria desconhecido do grande público.
Comecemos pela vertente política. Houvera a higiénica separação entre as águas académicas e políticas e rapidamente se atribuiria esta responsabilidade: o pescoço de um Secretário de Estado ou de um Ministro abanaria pendurado num baraço. A situação é simplesmente insustentável e, independentemente do burocrata que tenha falhado no controlo de qualidade de todo o software incluído no Magalhães, alguém tem de assumir a responsabilidade política. Jorge Coelho demitiu-se por uma ponte que desabou por incúria que, ainda que indirecta, não poderia ser imputada exclusivamente ao seu consulado. Mas não aqui. Aliás, o Secretário de Estado Jorge Pedreira, com um raciocínio tão devedor à ciência económica, já tratou de dar às coisas a devida proporção: “não é pelo facto de um programa de jogo didáctico ter erros, que isso diminui, em alguma coisa, a utilidade e a importância do projecto do computador Magalhães”. Pelo contrário senhor Secretário de Estado, é precisamente por um único programa ter falhas tão clamorosas que toda utilidade está em causa. Simplesmente porque um sistema de educativo sério, com decisores políticos sérios, com técnicos e especialistas competentes e com procedimentos robustos e sujeitos a controlo de qualidade não permite, em absoluto, que tais coisas aconteçam.
Mas suponhamos que Jorge Pedreira tem razão. Uma andorinha não faz a Primavera, o projecto educativo é sólido, o seu impacto, certamente positivo, é mensurável e será conhecido no curto, médio e longo prazos. Resta apenas saber, nem que seja por académica curiosidade, como é que este inócuo deslize aconteceu. Olhemos, então, para o papel do especialista, no caso, o fornecedor dos conteúdos.
O Magalhães é distribuído com dois sistemas operativos distintos instalados: Windows XP e Linux/Caixa Mágica. Com cada um dos sistemas operativos é incluído um pacote de programas, supostamente de valia didáctica: processadores de texto, folhas de cálculo, enciclopédias, navegadores e, o pomo da discórdia, um pacote de programas intitulado GCompris. Este pacote faz parte apenas do Caixa Mágica. Acontece que o Caixa Mágica, sendo uma variante do GNU/Linux, extravasa o conceito de sistema operativo e baseia-se numa filosofia de desenvolvimento distinta do software produzido tradicionalmente em empresas comerciais. Uma pesquisa sumária no Google pode ajudar a compreender facilmente a questão, mas é de todo o interesse olhar para a explicação (oficiosa) de Paulo Trezentos, um dos responsáveis (ele intitula-se developer) pelo Caixa Mágica, bem como o press release (deve ser um comunicado de imprensa aplicado à informática) que a Caixa Mágica dizponibilizou.
Em primeiro lugar, Paulo Trezentos começa por chamar a atenção do público para o facto de em 1236 pacotes de software apenas o GCompris apresentar erros. Como tal, não é dada a devida importância à dimensão do erro. Apenas por lapso Paulo Trezentos, que até é assistente no ISCTE, não referiu que muitos desses pacotes são de baixo nível (controladores de hardware, código do sistema operativo, pacotes de suporte a outros pacotes) e que, por isso mesmo, nunca estão à vista do utilizador. Deve ter-lhe escapado também que o GCompris é apresentado como uma das principais mais-valias do Magalhães.
Prossegue, relembrando que em Outubro de 2008 e em Janeiro de 2009 já tinham sido feitas alterações, beneficiando do “controlo de qualidade interno e [d]a colaboração com professores e educadores”. O ponto é espúrio e apresentá-lo desta forma roça o cabotinismo. O facto é que o pacote educativo do Magalhães foi inicialmente disponibilizado com erros que, de tão grosseiros, nunca, jamais, em tempo algum (para usar a linguagem dos nossos tempos) passariam por um processo de revisão minimamente sério. Tudo o resto soa a desculpa de muito mau pagador.
O mito do especialista prossegue. A notícia do Expresso dá conta, em subtítulo, que o tradutor do programa em causa tem apenas a 4ª classe. Não obstante as reservas que José Saramago poderia levantar a este tipo de argumentação, Paulo Trezentos desfaz o equívoco: o tradutor, identificado como José Jorge, tem uma licenciatura em Filosofia e trabalha há muitos em Tecnologias da Informação. Diz o comunicado de imprensa que é devidamente qualificado (por quem?) para traduzir. Pena é que não saiba escrever em português e ainda assim traduza software didáctico que supostamente deve ser utilizado por crianças que estão a aprender a ler e a escrever. Ou talvez eu esteja a ser injusto. Confuso sei que estou, porque o comunicado de imprensa diz que as falhas na tradução são resultado de uma não validação manual da tradução automática. Isto é muito estranho. Falhas de tradução automática não podem ser atribuídas a coisas como “vês” em lugar de “vez”, “fês” em lugar de “fez”, “á direita”, “contar‑los”, “historia”, o uso não sistemático da segunda e da terceira pessoa e o já clássico “acabas-te”. Estes são erros típicos de pessoas com baixa literacia em português, especialmente comuns em quem tem o português como língua materna mas ou não teve uma aprendizagem formal, ou, se a teve, apenas até um nível muito incipiente. Também não é claro como conjugar esta notícia do Expresso com o que vem no comunicado de imprensa da Caixa Mágica.
Não obstante, talvez estejamos a olhar a coisa pelo prisma errado. Talvez estejamos a negligenciar um aspecto curial da questão: o modelo de desenvolvimento do software em que se incluem o Caixa Mágica e o GCompris. Explica-nos Paulo Trezentos, com paciência, que o software open-source se desenvolve de uma maneira bastante distinta do software desenvolvido em empresas tradicionais (como a Microsoft). O software open source não é propriedade de ninguém, o seu desenvolvimento é distribuído por todo o globo, quem quer contribuir contribui (como pode e como sabe) e todos (os developers, palavra cara a Trezentos) podem avaliar a contribuição de cada um. Assim, a melhoria é contínua e, até mesmo em fase de produção, o software pode incluir alguns defeitos que, com tempo, serão burilados. Mais, Trezentos indigna-se com o facto de o Expresso dar tanta importância aos erros localizados num único programa de todo o pacote Caixa Mágica, não dando a devida importância ao relevantíssimo facto de o software Livre/Aberto estar a ser preferido em muitas casas em detrimento do Windows XP.
Esta linha de argumentação é curiosa. Para além de dar ao leitor atento a satisfação intelectual de descobrir por si próprio a insinuação de (mais) uma campanha negra, desta feita contra o produtiva e eticamente superior movimento de software livre, mais uma vez contorna o essencial e o óbvio: foi disponibilizado à população escolar portuguesa um programa informático, supostamente didáctico, com erros de gramática grosseiros. Para além disso, pessoalmente ignorava que um dos objectivos do projecto Magalhães fosse disseminar o software livre/aberto, como se pode inferir das palavras de Trezentos. Quanto a campanhas negras, o Expresso já foi acusado de muitas, acho no entanto estranho que conduzissem uma contra algum tão obscuro para a maioria da população como o software livre recorrendo ao Magalhães, ainda para mais quando nunca se referem à noção de software livre, apenas ao programa em causa que é, absolutamente, o que interessa. Campanhas negras há muitas, e manhas nos jornalistas do Expresso suponho que também, mas eu normalmente vejo preguiça onde pode haver insídia: é muito mais económico (e recompensador) bater no Magalhães do que usá-lo para servir de moço de recados a esses papões da indústria de software.
Conclui Trezentos dizendo que “cerca de 10 pessoas, da Caixa Mágica e de parceiros, têm estado envolvidas desde Setembro no core da preparação do Magalhães em Linux”, que “o caso do Gcompris no Magalhães não contraria a minha crença que o modelo de Software Livre/Aberto é o melhor para o desenvolvimento de sistemas operativos e aplicações” e que “a nossa comunidade tem os melhores developers, os melhores tradutores e o melhor suporte” (sic). O problema é que contraria. O problema é com “core” ou sem “core”, com ou sem o melhor modelo de desenvolvimento de software do mundo, o Magalhães foi distribuído às crianças com erros de gramática básicos, grosseiros e que enojam qualquer profissional da educação. O melhor modelo, nas mãos de Trezentos e do “core”, deu à luz uma aberração que não tem justificação nenhuma. Independentemente da agenda política de Trezentos (no que ao uso de software nas instituições públicas diz respeito), o facto é que ninguém fez pior pela reputação do FOSS (Free and Open Source Software) em Portugal do que o “core” do Caixa Mágica. E que o produto que disponibilizaram às crianças portuguesas não passa por qualquer padrão mínimo de qualidade. Isto é claro para qualquer professor, pai e até para os petizes da escola primária. Para Trezentos e para o Secretário de Estado é uma questão lateral.
Mas sejamos justos com Paulo Trezentos. A sua fé num sistema que se demonstrou inexequível não se distingue da fé de outros ‘políticos’ e ‘especialistas’. Apesar de distribuírem um produto que, numa das suas aplicações essenciais falha redonda e vergonhosamente (nunca será demais repetir este facto), mantém-se firme no seu pressuposto: o modelo é o melhor. O irónico da questão é que, em teoria, Paulo Trezentos pode muito bem ter razão, mas não pelos motivos que pensa.
Estes são os erros que se encontraram neste programa em particular. Depois da polémica, outros aparecerão, com maior ou menor importância. De todo o modo, um dos pontos essenciais do modelo FOSS é que quantos mais pares de olhos há a controlar a qualidade de uma coisa, maior a probabilidade de se corrigirem erros e aumentar a qualidade dessa coisa. Mas apenas em função da qualidade dos pares de olhos. Este Magalhães é o produto dos ‘políticos’ e ‘especialistas’ que o conceberam. Apressado, atabalhoado, sem um racional teórico que o guie, sem um mecanismo de controlo de qualidade minimamente sério e sem vergonha na cara. Haja na população portuguesa, 'especializada' e ‘leiga’, pares de olhos em qualidade e quantidade suficientes para corrigir esta ‘política’ e esta ‘ciência’.

2 comentários:

memória disse...

Parabéns pela crítica. Sempre atento, o meu amigo!

... disse...

Isto enquanto não houver um Qualquer Coisa Henriques em cada esquina é um salve-se quem puder...